Essa pessoa não existe

Essa pessoa não existe

Eu ando um pouco em crise com meus desenhos. Insatisfeita com os resultados. Não que eu acredite que algum dia eu ficarei 100% satisfeita com o que eu produzo. Minha relação com criação sempre foi uma corrida invisível entre a ideia (que parece claramente esboçada na minha cabeça, mas que é apenas um rascunho à lápis bem fraquinho) e a técnica. Ou no caso a falta dela. Ou no caso ainda estar aprendendo ela. Ou no caso praticar e tentar não desistir depois da pilha de tentativas frustradas. Às vezes me vem à cabeça que pra insistir em desenhar precisa faltar um pouco de amor próprio. Será? Pelo menos pra mim que não nasci desenhando super bem. (E quem nasce sabendo qualquer coisa mesmo?) Aliás eu nunca tive facilidade pra nada a não ser uma coisa: insistir nas coisas. Isso pra mim vem naturalmente.

Então voltamos a esse momento de insatisfação. E pra mim não há nenhuma outra saída a não ser desenhar. E desenhar mais, e tentar mais. Talvez entre um desenho e outro você questione suas escolhas na vida. Talvez encontre coisas muito legais que tente em vão reproduzir em série. Ou consiga reproduzir e acabe se cansando e se questionando porque gostou daquilo pra começo de conversa. Mas não é assim, o desenvolvimento ocorre quando você nem está percebendo. E você fica puta com a poeticidade e não objetividade disso tudo. A gente não tem um minuto de sossego.

Direto do caderninho: primeira tentativa com rostos e manchas, ainda meio travada.

Eu decidi praticar mais. Eu preciso, evidentemente. Ando naquela fase que todas as pessoas parecem desenhadas meio iguais. Um traço preguiçoso, um corpo sem personalidade. Escolhi aquele exercício de desenhar umas manchas na página e a partir delas começar a criar rostos, personagens e tudo mais. No início não fui muito bem, eram os mesmos rostos em manchinhas de cores diferentes, até que uma sinapse disse sim a outra e tanto a mão quanto o cérebro entenderam o que tinha que ser feito.

Direto do caderninho: segunda tentativa e desenhos mais soltos e com mais personalidade.

Tem sido um exercício bem prazeroso. Imaginar pessoas diferentes, narizes com diversos formatos, experimentar outros tipos de olhos, variações de cabelos, tentar expressões variadas. Quando desenho tento puxar da imaginação. Sem sair de casa, não tem como roubar as expressões das pessoas que vejo na rua. Pesquisar referências de fotos às vezes não é tão legal assim, mas ajuda.

Explorando novos formatos: preenchendo uma folha A3 com rostos e histórias.

E eu acho que acabei me apegando um pouco a esse exercício de imaginar os rostos em manchas. Surgem os traços, as expressões e logo vem a tentação de criar uma história. Ué, por que não? De onde você vem, quais são seus sonhos, como toma seu café, quem são seus melhores amigos? Dá vontade de dar vida, né? (Tipo… Deus?) Mesmo assim me contento em dar nomes. E é um processo meio aleatório: eu olho a carinha final e escrevo um nome. Às vezes tento fugir dos nomes das pessoas que eu conheço, porque não quero associar a ninguém, nem faço pensando em alguém em especial. Por que o fato é que essas pessoas não existem.

Folha formato A3 com desenhos.
Explorando novos formatos: segundo estudo preenchendo uma folha A3 com rostos e histórias. Fiz as duas folhas A3 em uma mesma noite, nessa segunda já estava um pouco mais cansada, senti alguns resultados mais repetidos, mas curti igual.

This person does not exist

Também faz pouco tempo que esbarrei pela primeira vez nesse site. O que ele faz é gerar aleatoriamente imagens de pessoas a partir de um algoritmo de inteligência artificial. O resultado final é assustador de tão realista e crível. Não fosse o aviso no título do site, você com certeza acreditaria que essa pessoa vive em algum lugar do mundo, já imaginaria no que trabalha, quais são suas preferências pessoais e visões de vida só a partir de uma única foto. Porque não importa quão good vibes você seja, você sempre tira conclusões precipitadas a partir de poucos elementos. Meio que faz parte do nosso modo de pensar. Nessa era de fake news, de narrativas fabricadas e distorcidas a partir de elementos reais é difícil não fazer a relação. A receita de elementos reais e fantasiosos, narrativas que um grupo de pessoas queria muito que fosse realidade e então as registram em algum lugar pra que de alguma forma tome vida. Não que o conteúdo vire realidade, mas a forma e a mensagem correm soltas. Quando tá escrito é formalizado, parece real, né? Quando tem imagens, parece de verdade, não? Parece perfeito demais pra ser real. Real demais pra ser mentira.

Tanto as pessoas dos meus desenhos quanto as mostradas pelo This person does not exist têm algo em comum: obviamente elas não existem. (Por essa você não esperava, hein? Chocada.) Não nesse mundo que tocamos, nesse mundo que assistimos, nesse mundo onde interagimos. Mas será que suas representações não são uma forma existência? Ou: a narrativa que eu desenvolvi na minha cabeça enquanto via aquela foto, enquanto riscava aqueles traços, atribuía aqueles nomes, será que isso também não configura uma maneira de existir? Pra onde vai tudo isso? Digo, pra onde poderia ir? (além desse blog ou dos meus cadernos, enfim.)

Daria um bom enredo de ficção científica: uma dimensão inteira das criaturas que dei vida em minha mente. Um universo paralelo de pessoas geradas através de algoritmos de inteligência artificial de um site que só queria mostrar o poder de processamento em outra inocente dimensão. Que loucura. 

Outra coisa que acho interessante, é que assim como esse algoritmo de inteligência artificial faz leitura de padrões de rostos para gerar pessoas aleatórias e nem por isso menos assustadoramente reais, também temos o mesmo processo quando desenhamos. Aprendizado de máquina é juntar uma quantidade absurda de dados existentes e extrair padrões de lá para reproduzir em diferentes resultados (definindo grosseiramente, é claro). Quando aprendemos a desenhar é igual. Fica mais evidente esse processo quando pesquisamos por referências. Se quero desenhar um jogo de chá, pesquiso um monte de fotos de xícaras bonitinhas, de bules estilosos e os uso pra treinar minha cabeça e conseguir reproduzir um jogo de chá. O que a gente não percebe é que a nossa mente tá a todo o momento processando referências. Estar exposto a todo tipo de estímulo, ver pessoas na rua, interagir com as coisas que nos cercam, etc., etc. A gente tá a todo momento processando e entendo como as coisas são, no final das contas. Essa CPU que não para de trabalhar e nos encher de estímulos e ataques de ansiedade. Que louco. QUE MÁQUINA, MEUS SENHORES.

Afinal, machine learning são pessoas programando uma máquina para que ela se ensine. Que na realidade é a forma que nós nos ensinamos as coisas. Que é a única forma de se ensinar que sabemos. Até o momento.

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